Harmonização

Todo site sobre cervejas que valha o próprio tempo de carregamento deve ter uma página sobre harmonização, portanto aqui está a nossa.



Longe de pretender criar uma cartilha que diga "cerveja de estilo X deve acompanhar comida de estilo Y", a intenção aqui é explorar os porquês de uma cerveja combinar mais com certos pratos do que com outros.

É preciso lembrar que a gastronomia é uma arte, que possui regras e que quebrá-las pode dar resultados mais originais e tão válidos quanto os mais conservadores. Eu, particularmente, acho mais interessante arriscar e inovar do que seguir os mesmos cânones que são prescritos por aí. No entanto, antes de transgredir as "leis", vamos conhecê-las.

Existe uma série de fatores que dão a cada cerveja uma personalidade única, tais como: tipo e intensidade de maltes, presença maior ou menor de lúpulo, temperos como coentro ou canela, intensidade da carbonatação, acidez, espessura do líquido, dentre vários outros. Para fins práticos, fatores como a água utilizada ou as condições de armazenamento e produção da cerveja, presença ou ausência de conservantes e corantes etc., apesar de influenciarem na experiência da degustação, normalmente não são considerados.

Vamos voltar a atenção para alguns dos principais:


• Maltes


O malte é produzido colocando-se sementes de cereais como a cevada, a aveia, o centeio e o trigo em água. Quando o grão absorve bastante umidade e começa a germinar, ele é seco e então usado para a produção da cerveja. Variações como o tipo e quantidade de malte influem diretamente no resultado da cerveja. O malte puro é responsável por um sabor adocicado. Quando torrado, dá o aroma de café presente nas cervejas tipo stout e porter, por exemplo. Quando defumado, traz ao produto um toque de carne defumada, como nas rauchbiers. Regra geral, as cervejas mais maltadas são mais pesadas.


• Lúpulo


O lúpulo é uma trepadeira típica de regiões temperadas do hemisfério norte. Na produção de cerveja, usa-se a pinha da planta, botanicamente conhecida como estróbilo. Ela é responsável pelo sabor amargo e o aroma fresco da bebida. Cervejas dos estilos lager são tradicionalmente mais leves e lupuladas. Uma variedade famosa é o Saaz, que dá um aroma floral e/ou herbal à cerveja, é mais ácido e não confere muito amargor à bebida. As pilsners tchecas usam esse tipo de lúpulo.


• Levedura, teor alcoólico e carbonatação


Após o cozimento do mosto, este é fermentado pela levedura Saccharomyces cerevisiae, a mesma usada na produção dos vinhos, destilados, pães e queijos. Ela usa a glicose (C6H12O6) como fonte de energia, tendo como subprodutos o etanol (C2H6O) e o dióxido de carbono (CO2).

A quantidade de levedura utilizada é diretamente proporcional à quantidade de álcool e dióxido de carbono ― apesar de que a temperatura do mosto quando fermentado é um fator importante: temperaturas mais altas levam a uma maior evaporação de etanol e principalmente a uma menor solubilização de gás carbônico. Cervejas mais alcoólicas normalmente remetem à experiência de beber um vinho ou um destilado, e cervejas mais carbonatadas são mais ácidas devido à produção de ácido carbonico (H2CO3), resultado da solubilização do gás carbônico em água; normalmente são mais leves e remetem a champanhes.

Após a fermentação, a cerveja pode ser filtrada ou não. Quando filtrada, resulta num líquido translúcido. As cervejas de trigo normalmente não são filtradas, sendo mais opacas e mais espessas que as outras.


• Temperos
Casca de laranja
Especiarias
Grandes responsáveis pela unicidade de muitas cervejas. Podem ser usados os mais variados tipos de temperos, desde especiarias como cravo e canela até frutas vermelhas.


Interessante, mas e a harmonização?



Agora que entendemos os fatores que contribuem para o caráter de cada cerveja, vamos falar das comidas com as quais elas combinam.

Cervejas mais pesadas pedem comidas mais pesadas, e cervejas mais leves pedem comidas mais leves. Certo? Não, errado. Na verdade, mais ou menos certo. Esse simplismo equivale ao clássico "vinho branco vai bem com peixe, vinho tinto vai bem com carne vermelha": até dá certo, mas cada combinação é única e merece uma atenção especial, mesmo porque salmão vai bem com vinho pinot noir e frituras vão bem com cerveja pale lager.

Mas vamos falar melhor dessa recomendação básica. Ela significa que, para não errar, é melhor combinar as características dominantes de cada cerveja com as características dominantes da comida.

Ou seja, se você vai comer uma sobremesa de frutas doces, como banana, passas etc., uma cerveja como a Baden Baden Golden Ale, cheia de canela, não vai encobrir nem ficar escondida pelos sabores das frutas. Ou se a comida é um prato agridoce, como frango xadrez, os sabores vão ficar equilibrados com os de uma cerveja mais maltada e ao mesmo tempo temperada, como a Eisenbahn Weizenbock. Ou se a ideia é comer camarão ou peixe de carne branca, bem como uma salada, é legal acompanhar uma cerveja leve, como a Czechvar. E se for comer um queijo mais maturado, uma Duvel, com sua acidez, harmoniza bem, e assim por diante. Fatores como temperatura, textura etc. também são importantes.

Raramente essa orientação falha mas, depois de um tempo, é interessante se aventurar e experimentar combinações inusitadas. Claro que poucos dispõem de tempo e dinheiro para tentar sem critério, com grandes chances de dar errado e acabar com uma cerveja que fica escondida pela comida, ou vice-versa.

Não seguir essas conformidades significa procurar cervejas e comidas com características pouco afins, até opostas, que realcem umas às outras. Às vezes uma cerveja forte e pesada, como a Leffe Brune, acompanha bem uma carne de faisão, leve e pouco calórica, mas não um queijo de sabor forte como Stilton e Roquefort. Ou uma cerveja levinha e floral, como a 1795, vai bem com uma pizza de pepperoni etc.

Não vou fazer uma lista de dicas de harmonização heterodoxa, porque isso seria cair na mesma tendência prescritiva presente em muitos sites e livros com dicas de harmonização tradicional.

A ideia é que cada um procure conhecer a cerveja e seus pormenores, assim como os do prato, para então tentar combinações com um toque de sua própria personalidade e que agradem ao paladar.

Meus votos de boas experiências gastronômicas e lembre-se: comer bem é uma arte possível com recursos que vão dos mais simples…




… aos mais sofisticados.



Bon appetit!

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